O presente trabalho tem por objetivo traçar um paralelo entre o movimento do direito alternativo e o movimento das pessoas soropositivas e doentes de AIDS.
Para nos desincumbirmos desta tarefa utilizaremos como referencial a “Tipologia para Práticas Jurídicas Orgânicas” apresentadas por Edmundo Lima de Arruda Júnior, na obra Direito Moderno e Mudança Social.
Concomitantemente, esboçaremos uma análise do movimento no sentido de:
- a) efetivar o juridicamente instituído;
- b) transcender o instituído e
- c) instituir as reivindicações inéditas da sociedade na luta contra a epidemia de HIV/AIDS.
Partimos do pressuposto que a efetivação dos direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS e de grande parcela da população é essencial para o sucesso dos programas de prevenção e controle da epidemia.
HIPÓTESE CENTRAL
A hipótese central é que a tipologia em análise corresponde a uma estratégia política redefinidora da guerra de posição dentro da instância jurídica, capaz de: a) efetivar direitos das pessoas com HIV/AIDS; e b) possibilitar a implementação de políticas de prevenção à epidemia que dentro da visão clássica dos operadores jurídicos encontram vedação legal.
Pretendemos ainda, demonstrar a limitação do paradigma liberal/legal em solucionar muitos dos problemas advindos da epidemia de HIV/AIDS.
Paralelamente, esboçaremos rápida apresentação dos problemas, desafios e soluções enfrentados pelo movimento.
LEGALIDADE SONEGADA
Em face a reinterada sonegação de direitos civis, políticos e sociais as pessoas soropositivas e doentes de AIDS, a efetivação do juridicamente instituído, constitui-se como a principal estratégia na luta contra a “terceira epidemia“, que não corresponde a contaminação pelo vírus e a progressão da doença, mas sim pelas respostas excludentes e discriminatórias dadas pelas sociedade civil e política.
Aqui, ao contrário da tipologia apresentada, nem se trata de dar efetividade ao conjunto de dispositivos constitucionais de teor progressista, mas tão somente de garantir a eficácia social da legislação infraconstitucional.
Neste plano a racionalidade jurídica “oficial” não dá, ainda, sinais de esgotamento completo e tem possibilitado, por exemplo, o acesso gratuito a medicamentos (“coquetel”), cobertura de planos de saúde, reintegrações ao emprego, acesso a leitos hospitalares etc.
No caso do acesso aos novos medicamentos, é interessante notar que o movimento político/jurídico das pessoas soropositivas, doentes de AIDS e ONGs passam a servir como paradigma a outras patologias (distrofia muscular, diabete rara etc.) que também demandam judicialmente o Estado, alargando o leque de pessoas favorecidas com as decisões judiciais e acesso a saúde.
O poder judiciário que historicamente tem se pautado por decisões conservadoras e omissas (característica de poder de não decisão), passa a reconhecer tal direito dando efetividade prática ao art. 6° da Lei do SUS e a Lei nº 9.016/96 que assegura “assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica“.
Não obstante é necessário não restringir a cidadania das pessoas vivendo com HIV/AIDS a um monte de caixinhas de remédio.
Outrossim, o paradigma liberal/legal dá sinais de esgotamento para dimensionar diversos problemas suscitados pela epidemia de HIV/AIDS.
Como exemplo podemos apontar forte tendência do Direito Penal em responsabilizar as pessoas com HIV/AIDS pela propagação da epidemia, relegando o descaso do poder público e da própria sociedade civil em criar programas de controle e prevenção da epidemia.
O esgotamento do modelo também pode ser sentido na dificuldade em tratar de questões novas, mormente de uma epidemia que passa a exigir respostas rápidas e bastante complexas à grande parcela da sociedade.
Se é bem verdade que a sociedade como um todo tem tido dificuldades em conviver com a AIDS, o Judiciário tem demonstrado quão limitado, preconceituoso e pouco suscetível de desenvolver um sentido crítico mais acurado, o que seria o mínimo de se esperar de um poder, de certa forma, elitizado.
Assim, Juízes determinaram a perda da guarda do filho à mãe que após a separação foi morar com o filho na casa do tio soropositivo sob a alegação de risco à saúde da criança (SP); Tribunais exigiram teste anti-HIV como requisito ao ingresso na magistratura (SC); Juízes da Vara da Infância e Juventude vêm (até hoje) exigindo, (nem se sabe se a requerimento das partes ou se por impulso oficial) a testagem compulsória em crianças como requisito para a adoção; Juízes negaram liminares visando acesso a medicação importada ao fundamento de que o autor iria mais cedo ou mais tarde morrer (RS); Procurador do Estado contestam ações alegando que as pessoas vivendo com HIV/AIDS constituem um perigo à sociedade e portanto, não são dignas de ter acesso à saúde (RS); muitos operadores jurídicos sequer sabem distinguir a diferença entre uma pessoa soropositiva e uma com AIDS, o que inegavelmente, tem repercussões jurídicas relevantes (SC) etc.
E assim, se o Poder Judiciário consegue dimensionar questões básicas como acesso à medicação, planos de saúde etc, tem se demonstrado ineficaz em tratar, por exemplo, de questões relativas a testagem compulsória em gestantes, na adoção, em presídios etc.
Voltando à tipologia da legalidade sonegada, parece correto apontar o seguinte paradoxo:
O Poder Judiciário e o próprio Direito, apesar da crescente racionalização da sociedade e da tendência das relações sociais se tornarem em relações de perdas, danos e indenizações, alargando o papel do direito como forma de controle social, a instituição passa a perder este papel, sendo parcialmente suplantado pela mídia e outras formas de controle não coercitivos também responsáveis pelas próprias formas de denominação da doença e construção social da epidemia (a categoria do aidético, por exemplo).
Outrossim, não se pode deixar de relacionar no tipo em apreço a interligação entre o jurídico, político e o econômico, no sentido de que a eficácia do ordenamento não depende tão somente do direito mas, de condições extrajurídicas que possibilitem um direito justo.
LEGALIDADE RELIDA
Hipótese:
O tipo da legalidade relida, local privilegiado da hermenêutica alternativa (enquanto postura política coletiva), possibilita a consecução de estratégias de prevenção eficazes ao HIV/AIDS e a efetivação do direito à saúde, que não seriam possíveis dentro de uma leitura clássica dos operadores jurídicos.
O que está muito claro na tipologia apresentada é o fato de sociedade verdadeiramente democrática exigir um trabalho de artesania política visando uma permanente reinvenção simbólica.
A estratégia possibilita aos juristas questionarem não só como o direito é mas como deve e como não deve ser.
É nesse campo que ocorre o resgate da técnica como forma criativa de aprimoramento do direito, visando a efetivação de direitos sociais e possibilidade de implementação de políticas pública de prevenção.
Assim, como na tipologia proposta, entendemos que para o movimento das pessoas vivendo com HIV/AIDS este é um plano bastante complexo e de grande repercussões práticas na efetivação de direitos sociais e na implementação de políticas públicas de prevenção.
No campo do movimento das pessoas soropositivas, doentes de AIDS e usuários de drogas dois exemplos dão nota da importância da estratégia:
- A necessidade de implantar programas de prevenção da epidemia em usuários de drogas com distribuição de seringas e dentro de presídios, a distribuição de hiploclorito de sódio (forma de limpar seringas), que dentro da visão clássica, encontra óbice legal.
- É necessário, senão fundamental dizer aos ouvidos surdos dos operadores jurídicos (Ministério Público) que a utilização de drogas vai se dar com ou sem seringas contaminadas e que as estratégias de recuperação de usuários de drogas tem encontrado pouca eficácia prática, mormente no modelo repressivo, sistema que se auto reproduz ideológica e materialmente, Importante ainda salientar que as estratégias de redução de danos vem acompanhadas de políticas de tratamento ao uso excessivo de drogas.
- O agravamento da disseminação da epidemia de HIV/AIDS dentre a população indígena e o aparente óbice legal da distribuição de preservativos em reservas, ante a legislação que proíbe qualquer adoção de métodos contraceptivos nestes grupos sociais.
- Tal fato demonstra a necessidade de uma construção simbólica que possibilite, ou ao menos não obste, os trabalhos de prevenção da epidemia de HIV/AIDS.
Podemos ainda fazer uma rápida relação entre o plano da legalidade relida, os modelos de prevenção a epidemia, e os tipos weberianos ideais da “ética da convicção” e “ética da responsabilidade”.
Ao primeiro modelo denominado repressivo atribuímos correspondência com a “ética da convicção”, em que as soluções apresentadas voltam-se exclusivamente aos fins, ou seja, todas as medidas possíveis devem ser tomadas visando a prevenção da epidemia, ainda que violem direitos humanos e não raramente sejam destituídas de eficácia prática.
Neste modelo, podem ser admitidas as testagens compulsórias como condição de ingresso em outros países (ainda que estes países tenham o maior número de pessoas soropositivas no mundo), políticas de isolamento, testagens mandatórias em usuários de drogas, gestantes, crianças a serem adotadas, presidiários etc.
Tais políticas, parecem ter correspondência com um modelo totalitário de sociedade onde as soluções, basicamente, são consubstanciadas em leis penais mais severas.
Importante notar que muitos dos penalistas atuais vêm tipificando a transmissão dolosa do HIV como tentativa de homicídio e até homicídio consumado.
Postura teórica que nem de longe soluciona o problema da epidemia.
Aliás as demandas dos grupos sociais por cidadania na sociedade brasileira vem sendo acompanhadas de um forte modelo penal repressor, como por exemplo, nos casos dos trabalhadores sem terra.
Da mesma forma, as demandas das pessoas vivendo com HIV/AIDS têm sido reprimidas sob a categoria do manto do “aidético que dolosamente transmite a doença“.
O modelo dito liberal pode ser relacionado com a “ética da responsabilidade” onde as ações pautam-se pela observância de direitos humanos, reconhecimento da diversidade e pluralidade de sujeitos, a valorização do emocional em face a simples informação etc.
A prevenção da epidemia, neste modelo, está relacionada a um pressuposto maior, não só de observância, mas de efetivação de direitos sociais das pessoas com HIV/AIDS e de grande parte da população.
Assim, como a tipologia weberiana os modelos apresentam natureza ideal e podem ser vistos se inter-relacionando, inclusive simbolicamente, entre os diversos atores sociais na construção social da epidemia.
AIDS e LEGALIDADE SONEGADA
É o campo de luta por uma adequação mínima entre racionalidade formal e material, bem como pela efetivação das reivindicações inéditas da sociedade, na luta contra a opressão e exclusão social.
Sustenta Edmundo Arruda Jr. que “há nítido irracionalismo quando o formalismo é exacerbado sem efetiva satisfação de demandas sociais, a começar por emprego, pois o trabalho é condição primeira de cidadania, na feliz idéia de Tarso Genro“.
Não duvidamos que do divórcio entre racionalidade material e formal exsurge verdadeiro irracionalismo do sistema.
Discordamos, no entanto, dos autores ao eleger o trabalho como condição primeira de cidadania.
Em vista da dificuldade de estabelecer uma escala de valores e necessidades válidas universalmente, entendemos que de nada vale a garantia aos valores sociais do trabalho se tal direito não pode ser exercido.
Assim, elegemos a saúde como pressuposto básico para o exercício do trabalho.
Parece-me que a própria idéia de eleger o trabalho como categoria central denuncia, com todo o respeito, a expressiva obra dos autores, uma supervalorização dos processos produtivos e industriais em detrimento da saúde e da própria existência humana.
Retornando a tipologia da legalidade sonegada, ela corresponde, de certa forma, à necessidade da radicalização da democracia enquanto valor universal.
Não a democracia representativa, meramente formal, baseada na certeza e segurança jurídica, mas como sentido do produto de conflitos sociais e resistência à produção de uma subjetividade que padroniza, estigmatiza e anula.
Na legalidade sonegada a democracia pode ser vista como criação incessante de novos direitos e a superação de limites da sociedade.
Entendemos, ainda, não ser possível centrar nos movimentos sociais a responsabilidade por uma nova racionalidade emancipatória.
Não obstante, não se pode deixar de reconhecer estes movimentos como responsáveis por uma estratégia de radicalizar o jogo democrático.
Neste sentido a vitória das pessoas soropositivas e doentes de AIDS na liberação do AZT, criação de redes de direitos humanos, acesso a medicamentos, redimensionamento da relação médico-paciente, criação de uma política de drogas baseado na redução de danos etc.
Entretanto, hoje em dia assiste-se processo de “cooptação” pelo Estado de antigas lideranças e pessoas soropositivas que passam a trabalhar nos programas municipais de DST/AIDS, com vitórias importantes para o movimento.
Por fim, a importância dos movimentos sociais não reside tão somente na efetivação de direitos, mas na necessária criação de uma subjetividade autônoma, resistente à massificação social.
Daí, a força dos movimentos de base comunitária na circulação de uma singularidade e subjetividade, transgressores dos mecanismos repressivos de identidade cultural.
Assim, se é bem verdade que negamos uma racionalidade emancipatória inerente aos movimentos sociais é necessário enxergar, alguns destes movimentos como pontos de ruptura do modelo de personalidade dominante.
Assim, se é fundamental assegurar o trabalho às pessoas soropositivas e doentes de AIDS, da mesma forma é necessário fazer circular seus desejos e demandas sociais, reconstruindo a cara da epidemia e destas pessoas tão estigmatizadas.
Sandro Sardá.